24/04/2013

Decepcionando Bukowski



A vida é um esgoto
Escura e fétida
o nojo de tocar nas paredes é inevitável
Todas as direções parecem levar a um lugar pior
Seguir em frente apenas para não deixar os vermes subirem pelas botas
Bebo até não mais sentir o odor do chorume que molha as roupas
Avançando pelas galerias de água podre
As vezes pra cima, até a luz do sol e o lixo da superfície entrarem bueiro adentro  e  encherem minha boca de ânsia
As vezes pro fundo, mais pra perto dos ratos
Os ratos pelo menos são honestos, querem me roubar e não tentam fingir que não querem
Faço obscenidades para espantá-los, escarro na cara deles
Mas eles já não se importam mais
Roem meus tornozelos necrosados
E lambem minha boca enquanto durmo
Mas quando eu for apenas uma carcaça podre e sem vida
Só os vermes me acolherão



07/04/2013

Curta Metragem


Varanda de Madeira ruidosa, era onde estávamos sentados, lembro-me desse dia:  uma quinta-feira de primavera, as horas já estavam avançadas noite adentro, calma e amena; com o silêncio produzido pelos que dormem e os que respeitam o escuro da noite, conseguia ouvir os trovões da chuva que caia a muitos quilômetros. Assistia o movimento dos bichos noturnos. E, com a caneta em punho, tentava escrever algo que fosse tão contemplativo quanto aquele momento de solidão prazerosa. Sim, ficar sozinho é prazeroso, não o tempo todo, claro. 

Costumo dizer que nem sozinho eu fico de fato sozinho, nesses momentos eu me faço companhia e quase sempre meu Eu lírico também aparece, apesar de nossa relação ser um tanto conflituosa. Colocamos a conversa em dia, lavamos nossas roupas sujas, e damos risadas dos nossos próprios infortúnios. Reforçamos os votos de segredo das coisas que são só nossas.

Tentando escrever alguma coisa que valesse a pena, vinham em minha mente ideias não tão boas, algumas melhores, outras piores. Passados vinte minutos, se quer tinha encostado a ponta da caneta no papel. Engraçado que quanto mais se tenta apurar as ideias antes de escrever, pior elas vão ficando, até perderem completamente o sentido. E escrever coisas sem sentido só é permitido aos artistas de verdade. Rabiscadores de palavras, como eu, acima de tudo, tem que conhecer os próprios limites. Já têm textos ruins suficientes espalhados por toda parte.

Há tempos queria escrever um romance - minha neta, noutro dia, disse que romances são para velhos. No auge dos seus nove anos, disse a ela que tinha razão, fiz cosquinha em sua barriga e fomos assistir desenho animado. 

Não poderia ficar de fora do meu romance, uma mulher como Alice: espírito forte, discernimento aguçado, personalidade radiante, inteligência em demasia, feminilidade em tudo que é seu, dona do meu mundo, a quem eu devoto todas as homenagens. Esposa, mulher, companheira, confidente, amiga. Protagonista do que há de melhor em mim.

Meus filhos, razão primeira para que eu me tornasse uma pessoa melhor... ou um pouquinho menos pior. Nada se compara a esse sentimento que se tem por um filho. 

Perdi bastante... dinheiro, tempo com coisas sem importância, amigos, viagens, minha carteira e celulares [incontáveis vezes], dizer coisas de que gostaria, elogiar, xingar, brigar, pedir desculpas. Mas ganhei também... mais ganhei do que perdi, acredito.
Fracassos, arrependimentos, saudade, cheiro de material escolar novo dentro da mochila, alegria, vergonhas, gargalhadas, beijo na boca, filmes ruins, decepções, orgulho, raiva, o primeiro carro zero, festas, brigas, velórios, fralda suja, porres, brigas, time do coração, tatuagem, gírias esquecidas... sim, eu vivi tudo isso.

Depois de me emocionar relembrando todas essas coisas tomei minha decisão: desisti de escrever o romance, acho que essa é a decisão mais acertada. Minha vida já foi um belo romance, com personagens reais, e estórias de amor e aventura. Agora, após tantas páginas escritas nas linhas da vida, viradas uma a uma pelo tempo, o desfecho é simplesmente comtemplar minha obra. Meu ego, em silêncio, concorda, sorrindo ternamente. Eu lírico sorri um sorriso honesto, como poucas vezes vi em seu rosto, toma a caneta de minha mão, e escreve “fim.” na folha deitada sobre minhas pernas. Continuamos, os três, sentados na varanda de madeira ruidosa.

[rh.março.2013]
imagem: http://imagens-de-fundo.blogspot.com/2011/05/